No dia em que saiu de casa foi
para a estação rodoviária com a roupa do corpo. Indeciso quanto ao rumo a
seguir, sentou-se e esperou. Acabou pernoitando lá mesmo, numa poltrona
plástica, assistindo TV. Estava limpo e barbeado e nenhum segurança o incomodou.
De manhã tomou café com
leite e comeu pão com manteiga. Se gastasse cerca de R$20,00 por dia o salário-mínimo
da aposentadoria renderia até o final do mês.
Não tinha planos. Não precisava
pagar passagem em ônibus urbano. Pegou um e foi para o centro da cidade. Lá, caminhou
devagar, leu as notícias na banca de jornal e olhou vitrines. Depois, sentou-se
numa praça e observou o vai e vem das pessoas. Parecia que todos tinham pressa
e destino, menos ele.
Passou algumas horas num
centro cultural. No fim da tarde encontrou, no lixo de escritórios, uma pequena
mala com rodinhas. Estava em bom estado. Pegou-a, dizendo para si mesmo que não
recomeçaria a acumular objetos. Desde a véspera havia decidido viver com apenas
o absolutamente indispensável, mas a mala ajudaria a compor o personagem que seria
dali em diante. Ninguém confia em quem só tem a roupa do corpo porque passa a
sensação de que não tem nada a perder.
Voltou para a rodoviária.
Tomou banho e barbeou-se pensando
em pernoitar no aeroporto internacional no dia seguinte. Tomou uma sopa e
terminou o segundo dia da nova vida.
No aeroporto o desconforto ficou
do lado de fora por causa do ar-condicionado, dos vidros escuros e das poltronas
acolchoadas. O silêncio só era interrompido quando a voz feminina anunciava os
vôos. O tempo passava mais devagar e a comida era muito mais cara. Leu jornais
e revistas abandonadas, deu informações para turistas, ajudou pessoas que
carregavam muitas malas.
Voltou para o centro da
cidade. Foi para a biblioteca. Não passou fome e estava conseguindo gastar um
pouco menos que a sua cota diária, o que era um bom sinal para quem havia se preparado
para uma vida espartana. Precisava de uma muda de roupa porque tinha que lavar
a que usava. Sem aparência de limpo não poderia frequentar e muito menos
pernoitar nos lugares.
Conseguiu umas poucas peças num
brechó de instituição de caridade. Colocou-as na mala e seguiu adiante. Já estava
transportando bagagem. A mala já acumulava a função de guarda-roupa e despensa.
Quando o pernoite era no aeroporto, em dias alternados com a rodoviária, o
lanche da noite era comprado no mercado que havia no caminho.
Observou que estava ficando
difícil encontrar telefone público porque todos usam o celular. Todos menos
ele. Ainda bem porque o telefone não faria a menor falta e não havia com quem
falar. O celular era uma obrigação e ele estava fugindo delas.
Nas lanchonetes da
rodoviária ou do aeroporto, os passageiros quase sempre apressados, costumavam
deixar uma parte do alimento intocada nas mesas que ele, discretamente, pegava
ou pedia ao garçom.
Passou a primeira semana e ele
estava começando a achar tudo monótono. Já dormira em quase todos os lugares
possíveis, até em cadeiras de roda e de engraxate. As câmeras faziam a
varredura do ambiente e não era fácil encontrar lugar para dormir. Mesmo com
boa aparência ele estava ficando conhecido e já pediam para ele ir para outro
lugar. Quem mandava ele embora era sempre o chefe do guarda legal.
Começou a dormir sentado na
mala sob marquise ou viaduto. A concorrência era grande e não havia sossego.
Bêbados, arruaceiros e criminosos atraiam a polícia para o local. Alguns
policiais faziam perguntas e eram agressivos sem a menor necessidade. Coisas do
ofício. Alguns dias eram melhores que outros e ele ia convivendo e ao mesmo
tempo mantendo uma certa distância de todos na medida do possível. Pensavam que
ele era mudo.
Foi roubado no início do mês
seguinte e precisou entrar na fila para receber a lata de sopa dos voluntários.
Sua aparência havia piorado. Numa noite especialmente fria, levantou os olhos
da lata para o cabo longo da concha e da mão para o rosto da assistente social.
Estremeceu ao reconhecer sua irmã mais velha, mas não disseram nenhuma palavra.
Na noite seguinte ao
receber a sopa tornou a procurar o rosto da assistente social. Os dois irmãos continuavam
em silêncio, mas com lágrimas nos olhos ...