quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Lourinha do S.U.V. (Sport Utility Vehicle)


Ela é baixa e magra, mas tem atitude. O cabelo é louro, mas a cor não é natural. Gosta de penteado volumoso. Só usa objetos grandes dos óculos escuros aos saltos bem altos, passando por brincos, colares, pulseiras, anéis e bolsas da moda. Abusa do dourado o do perfume.

Não passa despercebida em nenhum ambiente porque faz barulho com os saltos no assoalho quando anda e a bolsa grande esbarra nas pessoas.  

Vive falando no telefone celular, mesmo quando dirige a caminhonete blindada e com vidros bem escuros. Ocupa mais de uma vaga nos estacionamentos, mesmo as para deficientes, e nem repara se os outros motoristas vão conseguir abrir as portas dos carros estacionados ao lado. A via preferencial é sempre a dela.

Nunca entra em fila, não espera pela vez, interrompe conversa alheia, pergunta e não presta atenção na resposta. Está sempre com pressa. Nunca usa as palavras mágicas “por favor”, “muito obrigado” e “desculpe-me”.

Os empregados não gostam dela. Dizem que ela não era assim, mas com o casamento milionário acostumou-se a olhar as pessoas do alto, quer dizer, do alto dos seus sapatos, do alto da sua “esse-u-vê”, do alto do seu apartamento de cobertura em frente ao mar.

Ela vai fazer aniversário e ainda bem que o mimo que o milionário comprou não foi um veículo militar do tipo “HUMMER” porque no trânsito ela também passaria por cima de todo mundo da mesma maneira que faz na vida real...
 

                
 

 

Foto veículo "HUMMER", fonte Wikipédia.
 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

"Clochard"


No dia em que saiu de casa foi para a estação rodoviária com a roupa do corpo. Indeciso quanto ao rumo a seguir, sentou-se e esperou. Acabou pernoitando lá mesmo, numa poltrona plástica, assistindo TV. Estava limpo e barbeado e nenhum segurança o incomodou.

De manhã tomou café com leite e comeu pão com manteiga. Se gastasse cerca de R$20,00 por dia o salário-mínimo da aposentadoria renderia até o final do mês.

Não tinha planos. Não precisava pagar passagem em ônibus urbano. Pegou um e foi para o centro da cidade. Lá, caminhou devagar, leu as notícias na banca de jornal e olhou vitrines. Depois, sentou-se numa praça e observou o vai e vem das pessoas. Parecia que todos tinham pressa e destino, menos ele.

Passou algumas horas num centro cultural. No fim da tarde encontrou, no lixo de escritórios, uma pequena mala com rodinhas. Estava em bom estado. Pegou-a, dizendo para si mesmo que não recomeçaria a acumular objetos. Desde a véspera havia decidido viver com apenas o absolutamente indispensável, mas a mala ajudaria a compor o personagem que seria dali em diante. Ninguém confia em quem só tem a roupa do corpo porque passa a sensação de que não tem nada a perder.

Voltou para a rodoviária. Tomou banho e barbeou-se pensando em pernoitar no aeroporto internacional no dia seguinte. Tomou uma sopa e terminou o segundo dia da nova vida.

No aeroporto o desconforto ficou do lado de fora por causa do ar-condicionado, dos vidros escuros e das poltronas acolchoadas. O silêncio só era interrompido quando a voz feminina anunciava os vôos. O tempo passava mais devagar e a comida era muito mais cara. Leu jornais e revistas abandonadas, deu informações para turistas, ajudou pessoas que carregavam muitas malas.

Voltou para o centro da cidade. Foi para a biblioteca. Não passou fome e estava conseguindo gastar um pouco menos que a sua cota diária, o que era um bom sinal para quem havia se preparado para uma vida espartana. Precisava de uma muda de roupa porque tinha que lavar a que usava. Sem aparência de limpo não poderia frequentar e muito menos pernoitar nos lugares.

Conseguiu umas poucas peças num brechó de instituição de caridade. Colocou-as na mala e seguiu adiante. Já estava transportando bagagem. A mala já acumulava a função de guarda-roupa e despensa. Quando o pernoite era no aeroporto, em dias alternados com a rodoviária, o lanche da noite era comprado no mercado que havia no caminho.

Observou que estava ficando difícil encontrar telefone público porque todos usam o celular. Todos menos ele. Ainda bem porque o telefone não faria a menor falta e não havia com quem falar. O celular era uma obrigação e ele estava fugindo delas.

Nas lanchonetes da rodoviária ou do aeroporto, os passageiros quase sempre apressados, costumavam deixar uma parte do alimento intocada nas mesas que ele, discretamente, pegava ou pedia ao garçom.

Passou a primeira semana e ele estava começando a achar tudo monótono. Já dormira em quase todos os lugares possíveis, até em cadeiras de roda e de engraxate. As câmeras faziam a varredura do ambiente e não era fácil encontrar lugar para dormir. Mesmo com boa aparência ele estava ficando conhecido e já pediam para ele ir para outro lugar. Quem mandava ele embora era sempre o chefe do guarda legal.

Começou a dormir sentado na mala sob marquise ou viaduto. A concorrência era grande e não havia sossego. Bêbados, arruaceiros e criminosos atraiam a polícia para o local. Alguns policiais faziam perguntas e eram agressivos sem a menor necessidade. Coisas do ofício. Alguns dias eram melhores que outros e ele ia convivendo e ao mesmo tempo mantendo uma certa distância de todos na medida do possível. Pensavam que ele era mudo.

Foi roubado no início do mês seguinte e precisou entrar na fila para receber a lata de sopa dos voluntários. Sua aparência havia piorado. Numa noite especialmente fria, levantou os olhos da lata para o cabo longo da concha e da mão para o rosto da assistente social. Estremeceu ao reconhecer sua irmã mais velha, mas não disseram nenhuma palavra.
 
Na noite seguinte ao receber a sopa tornou a procurar o rosto da assistente social. Os dois irmãos continuavam em silêncio, mas com lágrimas nos olhos ...



Mala marrom


Queria comprar uma mala de viagem antiga, mas não sabia onde conseguir. Acho que elas são mais chiques, de um tempo em que as pessoas usavam roupas e acessórios especiais para viajar e as viagens, como um todo, eram mais elegantes.
 

Por outro lado, tenho minhas superstições e confesso um certo receio em adquirir objetos usados porque sempre ouvi falar que os objetos conservam parte da energia boa ou ruim dos antigos donos.
 

Até que encontrei a mala marrom, num sábado, na Praça Benedito Calixto, em São Paulo-SP. Relutei um pouco, mas finalmente comprei-a com a desculpa de que comporia um personagem contador de histórias. Seria adereço utilizado em conjunto com chapéu, cachecol e guarda-chuva. Deixei-a no meu escritório.
 

Gosto de malas. Elas estão presentes em todos os momentos da vida. Mesmo antes de nascer, o bebê já tem a sua malinha. Depois no colégio, no trabalho, nas férias a mala sempre irá acompanhá-lo.

 
Fiz a minha compra antes viajar para a Cracóvia, na Polônia e conhecer o complexo de Auschwitz-Birkenau e seu museu. Se deixasse para depois, não compraria. É que lá existe um salão imenso cercado por vidraças e repleto de malas empilhadas até o teto.

 
São muito parecidas com a minha com o mesmo formato retangular e cantos vivos, são peças sobreviventes de uma época marcada pela elegância e, ao mesmo tempo, pela tragédia. Naquele local elas irradiam uma tristeza profunda porque estão ligadas a um dos piores momentos da História da Humanidade.

 
Nos filmes sobre a Grande Guerra na Europa, costuma aparecer a cena em que pessoas que já estão confinadas em bairros, são obrigadas a abandonar suas casas e seguir para local desconhecido. E carregam em malas de mão o que puderam salvar, mas elas vão ficando pelo caminho e nunca sabemos seu conteúdo. O que havia nelas? Comida, roupa, objeto religioso? Aquelas pessoas não sabiam que era a última viagem, mas mesmo que soubessem, o que levar na bagagem?
                                                                                                  

Sabemos que daquele momento em diante, não haveria tolerância para mais nada individual e sim fome, frio, doença e humilhação coletivos. Dali em diante, nada mais seria preservado, nada além do sofrimento.

 
Acredito que aquele pequeno gesto de arrumar a bagagem, mesmo que às pressas, era uma última tentativa de preservar o que restou do patrimônio da família ou da pessoa, o que ainda restava de dignidade humana.

 
Quando voltei da viagem, olhava para minha mala de modo diferente. Gosto muito dela e nunca senti nenhum desconforto ao manuseá-la. Isso não impede que, de vez em quando, eu me pergunte qual é a sua história. Quais caminhos percorreu? Pertenceu a alguém que escapou da guerra ou veio em tempo de paz?

 
Acho que nunca saberei, mas não importa. Ela continua no meu escritório e guardo nela a minha coleção de sonhos realizados, isto é, recordações de viagem, objetos de lugares por onde passei e faço questão de lembrar.