quinta-feira, 4 de outubro de 2012

"Clochard"


No dia em que saiu de casa foi para a estação rodoviária com a roupa do corpo. Indeciso quanto ao rumo a seguir, sentou-se e esperou. Acabou pernoitando lá mesmo, numa poltrona plástica, assistindo TV. Estava limpo e barbeado e nenhum segurança o incomodou.

De manhã tomou café com leite e comeu pão com manteiga. Se gastasse cerca de R$20,00 por dia o salário-mínimo da aposentadoria renderia até o final do mês.

Não tinha planos. Não precisava pagar passagem em ônibus urbano. Pegou um e foi para o centro da cidade. Lá, caminhou devagar, leu as notícias na banca de jornal e olhou vitrines. Depois, sentou-se numa praça e observou o vai e vem das pessoas. Parecia que todos tinham pressa e destino, menos ele.

Passou algumas horas num centro cultural. No fim da tarde encontrou, no lixo de escritórios, uma pequena mala com rodinhas. Estava em bom estado. Pegou-a, dizendo para si mesmo que não recomeçaria a acumular objetos. Desde a véspera havia decidido viver com apenas o absolutamente indispensável, mas a mala ajudaria a compor o personagem que seria dali em diante. Ninguém confia em quem só tem a roupa do corpo porque passa a sensação de que não tem nada a perder.

Voltou para a rodoviária. Tomou banho e barbeou-se pensando em pernoitar no aeroporto internacional no dia seguinte. Tomou uma sopa e terminou o segundo dia da nova vida.

No aeroporto o desconforto ficou do lado de fora por causa do ar-condicionado, dos vidros escuros e das poltronas acolchoadas. O silêncio só era interrompido quando a voz feminina anunciava os vôos. O tempo passava mais devagar e a comida era muito mais cara. Leu jornais e revistas abandonadas, deu informações para turistas, ajudou pessoas que carregavam muitas malas.

Voltou para o centro da cidade. Foi para a biblioteca. Não passou fome e estava conseguindo gastar um pouco menos que a sua cota diária, o que era um bom sinal para quem havia se preparado para uma vida espartana. Precisava de uma muda de roupa porque tinha que lavar a que usava. Sem aparência de limpo não poderia frequentar e muito menos pernoitar nos lugares.

Conseguiu umas poucas peças num brechó de instituição de caridade. Colocou-as na mala e seguiu adiante. Já estava transportando bagagem. A mala já acumulava a função de guarda-roupa e despensa. Quando o pernoite era no aeroporto, em dias alternados com a rodoviária, o lanche da noite era comprado no mercado que havia no caminho.

Observou que estava ficando difícil encontrar telefone público porque todos usam o celular. Todos menos ele. Ainda bem porque o telefone não faria a menor falta e não havia com quem falar. O celular era uma obrigação e ele estava fugindo delas.

Nas lanchonetes da rodoviária ou do aeroporto, os passageiros quase sempre apressados, costumavam deixar uma parte do alimento intocada nas mesas que ele, discretamente, pegava ou pedia ao garçom.

Passou a primeira semana e ele estava começando a achar tudo monótono. Já dormira em quase todos os lugares possíveis, até em cadeiras de roda e de engraxate. As câmeras faziam a varredura do ambiente e não era fácil encontrar lugar para dormir. Mesmo com boa aparência ele estava ficando conhecido e já pediam para ele ir para outro lugar. Quem mandava ele embora era sempre o chefe do guarda legal.

Começou a dormir sentado na mala sob marquise ou viaduto. A concorrência era grande e não havia sossego. Bêbados, arruaceiros e criminosos atraiam a polícia para o local. Alguns policiais faziam perguntas e eram agressivos sem a menor necessidade. Coisas do ofício. Alguns dias eram melhores que outros e ele ia convivendo e ao mesmo tempo mantendo uma certa distância de todos na medida do possível. Pensavam que ele era mudo.

Foi roubado no início do mês seguinte e precisou entrar na fila para receber a lata de sopa dos voluntários. Sua aparência havia piorado. Numa noite especialmente fria, levantou os olhos da lata para o cabo longo da concha e da mão para o rosto da assistente social. Estremeceu ao reconhecer sua irmã mais velha, mas não disseram nenhuma palavra.
 
Na noite seguinte ao receber a sopa tornou a procurar o rosto da assistente social. Os dois irmãos continuavam em silêncio, mas com lágrimas nos olhos ...



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