segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Duas mulheres

A Europa estava devastada. O mundo inteiro estava em guerra pela primeira vez. Os navios com imigrantes europeus que chegavam ao Rio de Janeiro lançavam a âncora longe da terra. Os passageiros eram, então, transferidos do navio para um barco bem menor e esse sim fazia o desembarque em terra firme.


Depois da longa viagem em um desses navios, Elisa, sozinha e muito nervosa, desembarcou colocando primeiro o pé esquerdo no chão. Os outros portugueses que já haviam desembarcado perceberam esse detalhe e, supersticiosos, comentaram entre si que ela não ia ser feliz na nova terra. Ela ouviu o comentário, mas não se abateu.


Elisa veio encontrar-se com o marido, Aníbal, que logo após casar-se com ela, em Portugal, viajou para o Brasil para tentar a sorte.


Ela demorou a encontrar o marido que trabalhava na lavoura em uma fazenda no interior do estado. Era uma sociedade com um outro português, mas no fim do mês o dinheiro mal dava para pagar o salário dos empregados. Por isso não havia muito incentivo para os sócios continuarem no negócio.


Elisa não hesitou e começou a adaptar-se ao país imediatamente. Única mulher na fazenda, trabalhou duro. Incansável, ajudava na enxada, lavava e cozinhava para todos. Tempos depois Aníbal conseguiu trabalho na Prefeitura no centro da cidade e mudaram-se para o bairro Humaitá, conquistando o conforto e as facilidades de uma casa alugada na zona urbana.


Com o passar dos anos, os filhos começaram a nascer e Elisa pensando no futuro queria investir as Libras Esterlinas que trouxera de Portugal, comprando um terreno no bairro Copacabana, mas Aníbal não concordou, argumentando:

- Qual! Comprar areia? Onde é que já se viu? Isso não vale nada!

E investiram todo o dinheiro na compra de terreno em um outro bairro chamado Gávea.


Pouco depois, Aníbal morreu e Elisa precisava continuar trabalhando, mas não sabia ler. De um momento para outro ela estava sozinha e com sete filhos para criar.


O tempo passou e já havia uma outra guerra mundial, a segunda. Essa guerra não levou nenhum dos filhos de Elisa, mas uma outra, sim: três dos filhos de Elisa perderam a guerra contra a tuberculose, exatamente igual ao pai.


Quando a vida da família começava a acomodar-se, surgia um fato novo e a felicidade parecia escapar. Era como se a profecia dos companheiros da viagem de navio continuasse atraindo sofrimento. Fazendo uma retrospectiva, Elisa reconhecia que não havia mesmo sido feliz no Brasil. Ficou viúva muito cedo e a vida foi reduzida a muita responsabilidade, trabalho e privações. O dinheiro investido no imóvel da Gávea nunca proporcionou nenhum centavo de retorno porque o terreno foi ocupado por posseiros e está situado, exatamente, no local onde hoje se encontra a favela da Rocinha.


A guerra finalmente acabou na Europa e no restante do mundo. Era o momento da humanidade reconstruir os sonhos e o futuro.


Depois de muito trabalhar para sustentar a família, Elisa, idosa e cansada, adoeceu. Impossibilitada de se movimentar, ela pediu para Crisântema, sua filha caçula, ir ao centro da cidade comprar medicamentos.


A jovem era muito tímida e não conhecia bem o centro da cidade, mas encontrou a farmácia recomendada. Francisco que trabalhava na farmácia percebendo o nervosismo da jovem, ajudou-a, explicando pacientemente as dosagens e o modo de usar os medicamentos importados descritos na receita médica.


Depois acompanhou-a até o ponto de parada do bonde que a levaria para casa e, entregando-lhe um cartão com o endereço da farmácia, ofereceu-se para ir à casa da enferma, no bairro Humaitá, aplicar as injeções receitadas pelo médico da família. Depois desse dia os dois jovens não se afastaram mais um do outro. Francisco morava sozinho em uma pensão na cidade desde que havia desembarcado do navio mercante que o trouxera do Recife. Nos dias de folga passeavam juntos e assistiam filmes no Cineac Trianon. Casaram-se e continuaram morando na casa alugada no Humaitá.


Elisa muito idosa e muito doente pôde, enfim, descansar. Os outros filhos estavam casados e já havia alguém com a intenção de amar, proteger e cuidar com muito carinho da sua caçulinha. Havia também a prima Almerinda que apesar da pequena diferença de idade sempre foi uma segunda mãe para os sete irmãos.


E nunca mais houve doença, desencontro ou separação naquela família que estava começando. E durante os próximos cinqüenta anos não houve um dia sequer em que Francisco e Crisântema, não estivessem juntos e felizes.


Essa é a história de Elisa, minha avó, no Brasil, e parte da história de Crisântema, minha mãe, hoje com quase 89 anos e uma vontade imensa de viver.

(Texto original inscrito no concurso "Talentos da Maturidade edição 2010")

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